Reflexões: um outro lado da música coreana
Como a busca pela música coreana pode nos levar a conhecer mais sobre sua cultura, além de reflexões sobre nossa própria existência como sociedade.
Meu pai me contou da entrevista do
Samuel Rosa, dizendo que o mundo perdeu a apreciação pela música, que ela
deveria ser ouvida e degustada. A opinião do vocalista do Skank me faz
questionar se Mozart diria o mesmo sobre a geração de músicos que vieram depois
dele.
A literatura, a poesia, a dança, a
música e até mesmo a língua são vivas, dependentes de contexto, não ficam
paradas no tempo, submissas a regras de cada um de
seus domínios. Fui grosso na mensagem com meu pai, respondi "o que diria
Mozart do Skank?". Pouco depois percebi meu erro e decidi escrever sobre
ele. Foquei na comparação como uma questão de qualidade. Isso não significa que
não tenho críticas a nossa forma de consumir essa arte hoje em dia. Mas devia
ter aproveitado a sugestão de meu pai, então passei a procurar algumas músicas
coreanas para apreciar.
Tentaria fugir do estilo de música
coreana mais conhecido entre brasileiros, o K-Pop. Buscaria algo não necessariamente melhor ou
pior, buscaria algo que pudesse ser apreciado de outra maneira, não tanto pela
dança ou aspectos visuais.
Entrei no Melon Chart, um dos
rankings mais famosos de música coreana. No quesito "top músicas
indies" encontrei duas que pareciam fugir do padrão que havia vivido até
então: 혁오 (Hyukoh) com 와리가리 (vais e vens)[1] e Crying Nut com a música 뜨거운 안녕 (despedida calorosa)[2]. Busquei os clipes no YouTube e
achei interessante. Mas ainda bem modernas para o que buscava. Continuei
visitando os charts por um mês e percebi que o top músicas indies basicamente
não se altera: comparativamente ao universo K-Pop, pouca gente escuta o que o
Melon define como indie.
Praticando para minha próxima sessão
de norebang, foi no YouTube que veio a luz: escutava novamente as duas músicas quando na lateral direita encontrei sugestões de outras
músicas "incomuns". Os canais aos quais pertenciam esses clipes
também possuíam mais sugestões interessantes. Passei mais algumas semanas
seguindo links no Youtube, até que me deparei com 김광석
(Kim Kwang-seok) interpretando 새장 속의 친구
(amigo na gaiola, em tradução livre):
"파란 하늘이 유난히 맑아서
좁은 새장을 풀려난 새처럼 모두
낡은 기억은 이제는 몰아내고 싶어
잦은 슬픔은 이제는 모두 안녕"
Dado meu conhecimento limitado da
língua, a letra parecia complexa, mas com um vocabulário simples o suficiente para que eu entendesse seu significado. A professora 이다혜 me
ajudou com uma tradução livre:
"Já que o céu azul está tão
claro,
como o pássaro libertado da gaiola
quero mandar embora todas as velhas
lembranças.
Adeus a todas as frequentes
tristezas."
Procurei mais músicas suas e
claramente elas são diferentes da música coreana que conhecia até então. O Wikipedia
define Kim Kwang-seok como um representante do folk rock coreano.
Amigos coreanos brasileiros brincam que virei 아저씨
(ajoshi, um senhor mais velho) escutando esse tipo de música, mas esse não é um
trote coreano (um dos ritmos de música que amigos identificam como música de
ajoshi).
Também não estou atrás do ritmo ou
da melodia, estou atrás da história com a qual ele nos confronta. Assisto
a um show especial[3] onde ele se apresenta, toca e
conversa com o público; nota-se de um tom triste em sua voz. Parece que foi seu
último show, pouco antes de sua morte.
Coreanos da Coreia ou que vieram na
última década ao Brasil ficam surpresos ao saber que escutei Kim Kwang-seok...
Um cantor que, baseado
no trabalho de seus precursores[4] , marcou a geração jovem dos anos 90
por trazer um contraponto a uma cultura pop individualista que ganhava corpo na
época.
Procuro mais, escuto mais e percebo
que nem todas as outras músicas têm o mesmo estilo de
letra que a primeira que me encantou. Algumas sim, outras não. O que haveria
por trás dela? Sua história de vida se desenrola ao redor de outros ativistas
que questionavam a crescente americanização da cultura pop coreana. Um grupo de
pessoas interessadas em uma realidade social e cultural diferente. Assim
encontro 유준열 (Yoo
Jun-Yeol), compositor da música e amigo de Kim Kwang-seok. Eles
trabalharam juntos pelo menos desde que participaram do grupo chamado 동물원
(Zoológico).
Recorro novamente à professora para ajudar a entender a letra de 유리로 만든배
(navio de vidro):
.....
조그만 공중전화 박스 안에서 사람들을 보면
난 유리로 만든 배를 타고 낯선 바다를 떠도네
새까만 동전 두개만큼의 자유를 가지고
이분 삼십초 동안의 구원을 바라고 있네
전화를 걸어 봐도 받는 이 없고
난 유리로 만든 배를 탄 채 떠도네
.....
Dado que os orelhões da Coreia na época eram de vidro, funcionavam à base de
moedas que davam dois minutos e meio de crédito:
````
Quando estou dentro de um pequeno
orelhão, vendo as pessoas de fora
estou a deriva num mar desconhecido
em um barco feito de vidro.
Com a liberdade equivalente a duas
moedas velhas
estou esperando um resgate de dois
minutos e meio.
Nao há quem atenda, por mais que
tente ligar.
Estou a deriva em um barco feito de
vidro.
````
Possivelmente a letra demonstra a
solidão de alguém apegado às suas raízes e valores, no meio de uma cidade
grande em plena expansão. Ele assistiu a cultura americana se misturar com a
cultura local, e a mudança de valores que ocorre como resultado das alterações
da realidade de sua sociedade.
Agora saio de meu barco e aceito os
braços abertos de meu pai, me coloco a apreciar a música que eu havia deixado
de lado por tanto tempo.
Por fim, pergunto a ele. O que acha
da letra de nosso navio feito de vidro em que vivemos nossos dias em São Paulo?
Ele relembra um conto que minha irmã apresentou esses dias, "Véspera de
Natal", do uruguaio Eduardo Galeano, resumido aqui:
.....
Fernando dirige o hospital infantil,
quando na véspera de Natal, soam os fogos de artifício e decide ir embora. Em
casa esperam por ele para jantar.
Feita a última vistoria das salas,
sente alguém segui-lo. Passos de algodão: se vira e é um dos enfermos. Na
penumbra, reconhece o menino que estava sozinho. Reconhece pelo rosto marcado
pela morte.
Fernando acaricia seu rosto.
"Diga," - sussura o menino
- "Diga a alguém que estou aqui".
`````
Meu pai me lembra de que a solidão
que vivemos em nossos navios é atemporal, independente de cultura, de situação
social ou do país de origem de um autor. Os sentimentos emanados por esses
escritores e compositores marcam uma genuína preocupação que aflige eu e você.
Cada um deles compartilha, além da reflexão sobre a humanidade, um pouco de sua
realidade, de sua própria cultura.
Como minha mãe gosta de Chico e meu
pai de canto gregoriano, é natural que eu gostasse de músicas que trazem uma
reflexão social, interna ou externa. Sigo procurando outros intérpretes e
escritores coreanos que me tragam a experiência que meus pais e irmãos
compartilharam.
Aprender mais sobre a cultura
coreana e nossa própria existência através desses compositores coreanos é um
ganho em diversas frentes: enriquece-nos como apreciadores da cultura coreana e
de música em geral, como críticos de nossas atitudes e como seres humanos.
Texto: Guilherme Silveira
Imagem: http://file.cbs.co.kr/
Revisão:
Centro Cultural Coreano
*Esse texto foi elaborado em sua totalidade pelo Repórter Honorário da
Cultura Coreana, não tendo ligação direta com a opinião do Centro Cultural
Coreano
- Arquivo em anexo