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Reflexões: um outro lado da música coreana

21 Mai 2016 | 2039 Hit

Como a busca pela música coreana pode nos levar a conhecer mais sobre sua cultura, além de reflexões sobre nossa própria existência como sociedade. 




Meu pai me contou da entrevista do Samuel Rosa, dizendo que o mundo perdeu a apreciação pela música, que ela deveria ser ouvida e degustada. A opinião do vocalista do Skank me faz questionar se Mozart diria o mesmo sobre a geração de músicos que vieram depois dele.

 

A literatura, a poesia, a dança, a música e até mesmo a língua são vivas, dependentes de contexto, não ficam paradas no tempo, submissas a regras de cada um de seus domínios. Fui grosso na mensagem com meu pai, respondi "o que diria Mozart do Skank?". Pouco depois percebi meu erro e decidi escrever sobre ele. Foquei na comparação como uma questão de qualidade. Isso não significa que não tenho críticas a nossa forma de consumir essa arte hoje em dia. Mas devia ter aproveitado a sugestão de meu pai, então passei a procurar algumas músicas coreanas para apreciar.

 

Tentaria fugir do estilo de música coreana mais conhecido entre brasileiros, o K-Pop.  Buscaria algo não necessariamente melhor ou pior, buscaria algo que pudesse ser apreciado de outra maneira, não tanto pela dança ou aspectos visuais.

 

Entrei no Melon Chart, um dos rankings mais famosos de música coreana. No quesito "top músicas indies" encontrei duas que pareciam fugir do padrão que havia vivido até então: 혁오 (Hyukoh) com 와리가리 (vais e vens)[1]  e Crying Nut com a música 뜨거운 안녕 (despedida calorosa)[2]. Busquei os clipes no YouTube e achei interessante. Mas ainda bem modernas para o que buscava. Continuei visitando os charts por um mês e percebi que o top músicas indies basicamente não se altera: comparativamente ao universo K-Pop, pouca gente escuta o que o Melon define como indie.


Praticando para minha próxima sessão de norebang, foi no YouTube que veio a luz: escutava novamente as duas músicas quando na lateral direita encontrei sugestões de outras músicas "incomuns". Os canais aos quais pertenciam esses clipes também possuíam mais sugestões interessantes. Passei mais algumas semanas seguindo links no Youtube, até que me deparei com 김광석 (Kim Kwang-seok) interpretando 새장 속의 친구 (amigo na gaiola, em tradução livre):

 

"파란 하늘이 유난히 맑아서

좁은 새장을 풀려난 새처럼 모두

낡은 기억은 이제는 몰아내고 싶어

잦은 슬픔은 이제는 모두 안녕"

 

Dado meu conhecimento limitado da língua, a letra parecia complexa, mas com um vocabulário simples o suficiente para que eu entendesse seu significado. A professora 이다혜 me ajudou com uma tradução livre:

 

"Já que o céu azul está tão claro,

como o pássaro libertado da gaiola

quero mandar embora todas as velhas lembranças.

Adeus a todas as frequentes tristezas."

 

Procurei mais músicas suas e claramente elas são diferentes da música coreana que conhecia até então. O Wikipedia define Kim Kwang-seok como um representante do folk rock coreano.

 

Amigos coreanos brasileiros brincam que virei 아저씨 (ajoshi, um senhor mais velho) escutando esse tipo de música, mas esse não é um trote coreano (um dos ritmos de música que amigos identificam como música de ajoshi).

 

Também não estou atrás do ritmo ou da melodia, estou atrás da história com a qual ele nos confronta. Assisto a um show especial[3]  onde ele se apresenta, toca e conversa com o público; nota-se de um tom triste em sua voz. Parece que foi seu último show, pouco antes de sua morte.

 

Coreanos da Coreia ou que vieram na última década ao Brasil ficam surpresos ao saber que escutei Kim Kwang-seok... Um cantor que, baseado no trabalho de seus precursores[4] , marcou a geração jovem dos anos 90 por trazer um contraponto a uma cultura pop individualista que ganhava corpo na época.

 

Procuro mais, escuto mais e percebo que nem todas as outras músicas têm o mesmo estilo de letra que a primeira que me encantou. Algumas sim, outras não. O que haveria por trás dela? Sua história de vida se desenrola ao redor de outros ativistas que questionavam a crescente americanização da cultura pop coreana. Um grupo de pessoas interessadas em uma realidade social e cultural diferente. Assim encontro 유준열 (Yoo Jun-Yeol), compositor da música e amigo de Kim Kwang-seok. Eles trabalharam juntos pelo menos desde que participaram do grupo chamado 동물원 (Zoológico).

 

Recorro novamente à professora para ajudar a entender a letra de 유리로 만든배 (navio de vidro):

 

.....

조그만 공중전화 박스 안에서 사람들을 보면

난 유리로 만든 배를 타고 낯선 바다를 떠도네

새까만 동전 두개만큼의 자유를 가지고

이분 삼십초 동안의 구원을 바라고 있네

전화를 걸어 봐도 받는 이 없고

난 유리로 만든 배를 탄 채 떠도네

.....


Dado que os orelhões da Coreia na época eram de vidro, funcionavam à base de moedas que davam dois minutos e meio de crédito:

 

````

Quando estou dentro de um pequeno orelhão, vendo as pessoas de fora

estou a deriva num mar desconhecido em um barco feito de vidro.

Com a liberdade equivalente a duas moedas velhas

estou esperando um resgate de dois minutos e meio.

Nao há quem atenda, por mais que tente ligar.

Estou a deriva em um barco feito de vidro.

````

 

Possivelmente a letra demonstra a solidão de alguém apegado às suas raízes e valores, no meio de uma cidade grande em plena expansão. Ele assistiu a cultura americana se misturar com a cultura local, e a mudança de valores que ocorre como resultado das alterações da realidade de sua sociedade.

 

Agora saio de meu barco e aceito os braços abertos de meu pai, me coloco a apreciar a música que eu havia deixado de lado por tanto tempo.

 

Por fim, pergunto a ele. O que acha da letra de nosso navio feito de vidro em que vivemos nossos dias em São Paulo? Ele relembra um conto que minha irmã apresentou esses dias, "Véspera de Natal", do uruguaio Eduardo Galeano, resumido aqui:

 

.....

Fernando dirige o hospital infantil, quando na véspera de Natal, soam os fogos de artifício e decide ir embora. Em casa esperam por ele para jantar.

 

Feita a última vistoria das salas, sente alguém segui-lo. Passos de algodão: se vira e é um dos enfermos. Na penumbra, reconhece o menino que estava sozinho. Reconhece pelo rosto marcado pela morte.

 

Fernando acaricia seu rosto.

 

"Diga," - sussura o menino - "Diga a alguém que estou aqui".

`````

 

Meu pai me lembra de que a solidão que vivemos em nossos navios é atemporal, independente de cultura, de situação social ou do país de origem de um autor. Os sentimentos emanados por esses escritores e compositores marcam uma genuína preocupação que aflige eu e você. Cada um deles compartilha, além da reflexão sobre a humanidade, um pouco de sua realidade, de sua própria cultura.

 

Como minha mãe gosta de Chico e meu pai de canto gregoriano, é natural que eu gostasse de músicas que trazem uma reflexão social, interna ou externa. Sigo procurando outros intérpretes e escritores coreanos que me tragam a experiência que meus pais e irmãos compartilharam.

 

Aprender mais sobre a cultura coreana e nossa própria existência através desses compositores coreanos é um ganho em diversas frentes: enriquece-nos como apreciadores da cultura coreana e de música em geral, como críticos de nossas atitudes e como seres humanos.

 

Texto: Guilherme Silveira

Imagem:  http://file.cbs.co.kr/cbsmain/media/201510/img277981745_33846.jpg

Revisão: Centro Cultural Coreano

*Esse texto foi elaborado em sua totalidade pelo Repórter Honorário da Cultura Coreana, não tendo ligação direta com a opinião do Centro Cultural Coreano


[1]https://www.youtube.com/watch?v=ECMc1SB60E0&index=2&list=PLG5NPL7MzVf9Xao3a3hdTRR-3cO9enIWI

[2]https://www.youtube.com/watch?v=kGyl2hReZks&list=PLG5NPL7MzVf9Xao3a3hdTRR-3cO9enIWI&index=3

[3]https://www.youtube.com/watch?v=A_FuedbPNeU

[4]https://en.wikipedia.org/wiki/Kim_Min-ki

Arquivo em anexo